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Sofia G.

Há nove meses nasceu uma criança sem vida.

Será este o princípio? Hoje faz nove meses que nasceu uma criança em silêncio. Hoje faz nove meses que dei à luz uma criança que tinha perdido a vitalidade dois dias antes.

Durante a minha gravidez, eu vivi uma experiência de muita alegria e também de muita angústia, porque foi a minha primeira criança, a minha primeira filha e a gravidez foi a coisa mais bela que me passou pelo corpo. Eu vivi uma experiência de uma sincera felicidade. As hormonas ajudavam a essa expansão: tudo era vida quando o corpo tem vida… vida dentro da vida. É um momento absolutamente mágico.

A certa altura eu comecei a deparar-me com as minhas próprias histórias interiores, com as minhas próprias angústias, e dei conta que eu não seria perfeita enquanto mãe. Quando somos pais e quando percebemos nitidamente que não vamos conseguir ser irrepreensíveis, começamos a perceber as limitações do nosso ser emocional, enquanto mãe ou pai, vamos percebendo cada vez melhor aquilo que é possível fazer. Não é possível fazer mais do que aquilo que foi feito, porque partimos do pressuposto que a pessoa fez da forma que achava certa naquela altura específica, naquele enquadramento, naquele cenário, naquele padrão emocional.

E foi um longo caminho, o crescimento desta criança, de compressão da minha própria infância. Eu cresci muito durante os seis meses da minha gestação e nestes nove meses seguintes ao parto.  

As condições, por ter sido descoberta uma síndrome rara na criança, e os caminhos de uma não interrupção, seriam catastróficos e fizeram com que esta criança nascesse sem vida.

Então ao terceiro dia, depois de interrompermos a vida, ela nasceu.

Todos os elementos da família fazem história na família. Todos aqueles que vieram à vida sem vida, são parte desta história e perante o que eu vivi e o que estudei e que eu sinto, é que uma das coisas mais interessantes a fazer para nosso preenchimento e para o equilíbrio da família, é nós inserirmos com um nome estes seres. Sabermos que posição é que eles ocuparam na nossa família. Inserir esta criança, percebendo a posição de cada filho na família. Porque se temos dois filhos e perdemos um ou outro, o segundo pode ser na verdade o terceiro, e isso muda tudo no potencial desse filho, ou o primeiro que se achava o primeiro é na verdade o segundo.

Então, já que se abriu esse vazio, que se preencha esse espaço de amor,

O mais importante em última análise, é poder celebrar cada ser, que veio à luz em certo momento. É dar-lhe um nome, é introduzi-lo na família de forma invisível, evidentemente, mas é ter um contacto com esta vida, percebendo qual foi o propósito, aceitar aquela história, celebrando da melhor forma possível aquilo que nos foi dado por esta criança que nos fez crescer, que nos fez ampliar a percepção, e que, pela dor, nos fez expandir a consciência. Porque como diria a Simone Weil, e Simone é o nome da minha filha, é preciso um espaço vazio, para entrar a força do invisível.

Então, já que se abriu esse vazio, que se preencha esse espaço de amor, pelo que é invisível, pelo visível, e que o nosso coração possa beber das nossas historias por inteiro. Sem serem apenas perdas vazias de significado mas serem processos transitórios de muito amor, vitalidade, de total compreensão.

Para terminar, existiram coisas que eu fui fazendo, depois do parto além de descansar, aceitar o arrombo hormonal que precisa de ser respeitado, o arrombo emocional que precisa de ser ouvido, choro que precisa de correr, grito que precisa de sair. Eu escrevia, escrevia muito, para ela, para a Simone, fiz uma espécie de caderninho secreto de diálogos de uma para uma e meditava. E falei muito pouco com as pessoas à minha volta porque eu sentia que as pessoas não tinham condições psíquicas para falarem sobre a morte e sobre a beleza daquela minha experiência. Talvez devesse ter falado mais e partilhado mais o que é uma experiência absolutamente milagrosa de dar a luz, mesmo que tenha sido em silêncio. E talvez por isso faça este pequeno texto, para que fique para a eternidade e para mim própria, enquanto ainda tenho 33 anos, que foi um ano de ressurreição. Então escrevam uma carta para esse filho, deem-lhe um nome, e introduzam-no na vossa Grade Familiar de forma silenciosa, apenas para inscreverem essa criança no vosso ser. E não deixemos que essas histórias sejam segredos ou tabus.

Então trabalhemos para a verdade, para o amor e para a luz e continuemos esta longa caminhada.

Nove meses foi o tempo que eu demorei a perceber exatamente que era nesta história que eu tinha que agarrar, para conseguir comunicar com estas pessoas feridas do passado. Eu queria, no fundo, abraçar todas as mães e pais, que perderam estes bebés tão maravilhosos, queria dizer que amo muito estas criancinhas que não puderam vir à vida, mas que acima de tudo, quem nasce somos nós. Porque somos nós que nascemos quando damos à luz um filho. É o filho que nos vem mostrar quais as feridas que ainda estão por sarar.

Um beijo a todas estas mães, a estes pais, a estes avós, a estes irmãos, a estes tios e estes primos e aos amigos, que estão sempre lá para nos acolher. A estas crianças eu entrego-lhes o meu sorriso cúmplice e o meu brilho.

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