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Soraia

Hoje, um ano depois do dia mais triste das nossas vidas, abro pela primeira vez, o meu coração para partilhar a minha história, a nossa história. 

Hoje, com o coração mais calmo, e depois de aceitar que deixar partir é um ato de amor, venho contar-vos que a perda de um filho é dos momentos mais traumáticos na vida de qualquer família.

Era Agosto e nós íamos fazer a ecografia morfológica, decidi levar a nossa filha para que pudesse ver pela primeira vez o mano/a. 

Sempre ouvi dizer que as mães têm um sexto sentido, e caramba… nesse dia fiquei a saber da pior forma possível, que afinal ele existe mesmo.

Pouco tempo antes de entrar no consultório, lembro-me perfeitamente de dizer esta frase “tenho tanto medo que não esteja tudo bem”. E não, não estava. Mal eu sabia que partir daquele dia, iria carregar uma das maiores dores em toda a minha vida. 

Entrámos no consultório, entusiasmados. Afinal íamos ser pais de 2, que bênção!

O médico coloca a sonda, e pergunta-nos se já sabemos o sexo do nosso bebé, e nós respondemos que não. Minutos depois, recebemos a notícia que íamos ter mais uma menina, para fazer companhia a este nosso leque familiar de mulheres. 

Pouco tempo depois, um silêncio invade a sala. A dada altura, decidimos perguntar se estava tudo bem, ao qual prontamente o médico me diz que não, não está tudo bem. O seu bebé tem um quisto no cérebro, tem de ir imediatamente à maternidade fazer exames mais específicos. 

Saímos desalmadamente daquele consultório, lavados em lágrimas, em desespero e completamente sem reação. 

Rapidamente as nossas famílias nos prestaram auxílio e vieram ao nosso encontro. Nessa tarde, corremos todos os hospitais possíveis. Estava a ser seguida no hospital particular, e dirigi-me as urgências ao qual rapidamente fui descartada, pois poderia não ser uma gravidez evolutiva. A resposta que me foi dada, era de que se tratava de uma situação muito burocrática. Corri mais 2 hospitais, acabei na Maternidade Alfredo Da Costa, onde com a maior empatia do mundo, me marcaram uma consulta no Diagnóstico Pré-Natal. Um sítio onde tudo começa, e onde acaba para muitos dos bebés. 

Era sábado, tinha um fim-de-semana inteiro pela frente…foi horrível. Não estávamos a conseguir aceitar o que se estava a passar, e estávamos aterrorizados a espera que a segunda feira chegasse. 

O dia chegou, dirigi-me à Maternidade Alfredo da Costa para a minha primeira consulta, no local onde ninguém quer estar, o diagnóstico pré-natal. Lá eu poderia imaginar que aos 30 anos de idade, iria ter de passar por um processo tão difícil como este.

No dia 15 de Outubro , no dia em que se celebra o dia da consciencialização da perda gestacional, a Benedita veio ao mundo, num parto respeitado e humanizado.

Depois de várias horas em espera lá entrei, e o médico teve perto de 1h a fazer uma ecografia. Realmente viu que existia um problema, mas ainda com muitas dúvidas. Aconselharam-me a fazer a amniocentese, para avaliar e despistar outro tipo de doenças gravas. Nesse mesmo dia fiz o procedimento. 

Lembro-me perfeitamente de nesse mesmo dia, me darem um termo de responsabilidade para assinar, caso fosse necessária intervenção médica, ou melhor dizendo uma Interrupção médica da gravidez, tendo em conta o estado avançado em que já me encontrava da gravidez. 

Colocarem nas nossas mãos, o destino da vida dos nossos filhos é um peso muito grande. É o peso de uma vida. A vida da minha filha. 

Informaram-me que deveria fazer uma ressonância magnética, pois só partir daí se conseguia ver melhor o bebé e problemas internos. 

Fui para casa de repouso, e 2 dias depois estava a fazer a ressonância. Disseram-me que teria de aguardar o resultado, e que a maternidade me ligaria para ir novamente a consulta. 

3 semanas depois, volto a fazer ecografia e a dúvida do médico persiste apesar da ressonância confirmar que existia um problema. 

Informaram-me que teria de aguardar, e fazer um acompanhamento da minha bebé para ver se o problema podia ter um retrocesso. Segundo os médicos era um problema que poderia ir ao lugar com o crescimento fetal. 

Na altura fiquei muito revoltada, não aceitava porque tanto tempo, porque me fazerem sofrer tanto. A espera era horrível, e eu sabia que quanto mais tempo passasse, mais doloroso seria para a nossa família. 

Durante longos 2 meses entre esperas e exames, lá chegamos ao diagnóstico final. 

Nesse dia, deram-nos a pior noticia que se pode dar a qualquer mãe ou pai. 

A nossa filha aos 8 meses de gestação, foi diagnosticada com uma má formação do sistema nervoso central, tinha uma síndrome muito rara e que seria totalmente incompatível com a vida humana. Foi devastador.

Disseram-me que uma neura pediatra iria entrar em contacto connosco, para nos explicar o que se estava a passar com a nossa bebé, e assim foi. 

Estávamos devastados, íamos a sair da maternidade quando recebemos uma chamada de uma enfermeira, a enfermeira Leonor Gonçalves, que para mim continua a ser um anjo da guarda. A Leonor queria saber como nós estamos, e falar connosco. Assim foi, voltamos para trás, fomos levados para uma sala e lembro-me como se fosse hoje. A Leonor, tocou no meu braço e disse pode chorar, fique a vontade. Foi um dos gestos mais bonitos que podiam ter tido connosco naquele momento doloroso. A ajuda veio ter connosco, sem pedirmos ajuda. Foi bonito e muito importante para nós. Até aos dias de hoje, a Leonor está sempre presente nas nossas vidas. 

Realmente são as pessoas que fazem os sítios, e o trabalho daqueles profissionais é tão importante para nós pais que vamos perder os nossos filhos. 

Dia 11 de Outubro, vamos }a maternidade iniciar o processo. Nesse dia somos deparados com uma série de questões, e mais uma vez a Leonor estava lá para nos apoiar, ajudar e agilizar todo este processo. 

A Leonor ajudou-nos com as questões mais burocráticas, e falou-nos sobre a oportunidade de conhecer a nossa filha, de ficar com as impressões dos pés e das mãos da nossa filha. Nem sequer pensei que isso fosse possível para um bebé que nasce sem vida.

 Dois dias depois, seguia-se o meu internamento para iniciar a indução de trabalho de parto. 

Nesses 2 longos dias, tivemos que tratar daquilo que mais custa a qualquer pai, enterrar um filho. Tratar do funeral da nossa filha que ainda não tinha nascido, e quem nem o mundo ia conhecer. 

Foi completamente devastador, não fui capaz de entrar na agência funerária, assinei os papéis no carro. Mas saímos dali com tudo tratado. 

Seguia-se outra fase complicada, comprar uma roupa para a nossa filha. Entrei 3 vezes na mesma loja e não consegui comprar nada. Acabei por ter de pedir ajuda a família para comprar a roupa para a nossa filha. 

É muito duro preparar o funeral de alguém ainda em vida. 

Dia 13 de Outubro com 31 semanas, fui internada. Cheguei a maternidade, a Enfermeira Leonor já estava a nossa espera. Fomos para uma sala, onde revimos todos os pormenores do que iria acontecer partir dali. 

A Leonor generosamente, sentou-me num cadeirão ao lado da janela e disse-me para eu me despedir da minha filha, para lhe poder dizer que me perdoasse, porque o que eu estava a fazer era um ato de amor.  A Leonor deu-me tempo, deu-me a mão, fez-me sentir mais calma. 

Ensinou-me a exercícios para me sentir mais calma, para saber controlar as dores no trabalho de parto. 

Fomos então para a sala de ecografias, onde a médica estava a minha espera, acho que foi o momento mais duro do processo no hospital. Iriam ter de provocar a paragem cardíaca a nossa Filha. Deitei-me, demos a mão os dois e encostamos as nossas cabeças e a médica pediu-nos que não olhássemos para o monitor. Minutos depois, senti-me a perder os sentidos, estava completamente em outra dimensão e só me lembro da Leonor me tirar a máscara e dizer “fique comigo, concentre-se na minha voz”. O procedimento terminou, e estava meio adormecida.

Desci para o internamento, onde fui para uma sala isolada, para não ter qualquer tipo de contacto com as outras grávidas e ouvir os bebés chorar. Acho que isso é de uma enorme empatia que se pode ter com alguém. 

Fiz a primeira medicação para indução de parto, e nesse dia nada aconteceu, ao final da noite tentaram outro método de indução, que teria de se dar uma janela de 24h para tentar novo método. No dia seguinte, comecei a ter muitas dores, mas não tinha dilatação ainda, e na noite de 14, as dores começaram a agravar. A todas as enfermeiras da maternidade só posso agradecer todo o carinho que me deram, traziam me medicação, sentaram-se na minha cama e deram-me a mão, limparam as minhas lágrimas imensas vezes. 

Na manhã seguinte fui para o banho para atenuar as dores, estavam insuportáveis. Já estava em trabalho de parto desde essa noite. A médica veio avaliar, e já estava pronta para ir para o bloco de partos. Desci, levei epidural e começa o início de tudo, o medo, o fazer nascer. 

A enfermeira parteira Cleisa, que até hoje não me esqueço do nome dela disse-me “vamos ao seu ritmo, nasce quando você quiser” e assim foi. 

No dia 15 de Outubro , no dia em que se celebra o dia da consciencialização da perda gestacional, a Benedita veio ao mundo, num parto respeitado e humanizado. Não, a Benedita não chorou, mas tudo em mim se desfez por completo. 

Levaram a Benedita e aconchegaram-na na mantinha que tinha sido da irmã, a enfermeira regressa com uma caixa de memórias, com a hora do nascimento, o dia, e a impressão dos pezinhos e das mãozinhas. 

Chorei muito, foi devastador. 

No dia seguinte tive alta logo de manhã e fui para casa descansar, a nossa filha estava ao cuidado da nossa família, mas tínhamos que nos preparar para lhe dar a notícia. 

Na manhã seguinte fui buscá-la, sentei-me com ela e expliquei o que aconteceu à mana. Ela reagiu bem, ficou calma apenas nos perguntou se ia continuar a ser só ela na nossa vida e nós respondemos que sim e demos um abraço. 

Estivemos 1 semana a espera que liberassem o corpo da Benedita, e o dia do funeral chegou. Decidimos cremar a nossa filha, e lembro-me que ao chegar ao crematório havia uma placa que dizia “Filho de Soraia Carvalho”, foi aí que tudo se tornou ainda mais real. 

Demos a mão e entrámos, quando eu vi aquele caixão pequenino, não consegui conter-me e chorei compulsivamente. Foi um ambiente muito pesado, foi muito complicado, mas as nossas famílias estiveram sempre lá para nós. 

Aos poucos fui aprendendo a lidar com a nossa dor, a gerir os meus sentimentos. Descobri da pior forma, que o luto é um caminho longo e solitário. 

Hoje com o coração mais calmo, fiz as pazes com a vida, porque tal e qual como comecei a nossa história, deixar ir é um ato de amor. E assim foi.

Enquanto mãe, vivi o dia mais feliz da minha vida, e o mais triste também. Mas Hoje, Inicio um novo ciclo, e tu querida Benedita vais sempre fazer parte da história da minha há vida. 

Querida Benedita, espero que estejas em paz. Lembro-me de ti todos os dias. 

Com amor, Mãe.

3 comentários a “Soraia”

Querida Soraia, soube ao de leve a sua história e agora como mãe,a ler com detalhes, estou a chorar por ter sido tão estúpida,e não perceber os pormenores tão importantes. Mas simultaneamente sinto uma paz na sua descrição. Tem todo o meu respeito,e como católica acredito que a querida Benedita está a velar por vós. E um dia irão reencontrar se rodeadas desse Amor para a eternidade.
Obrigada pela partilha, pela generosidade, e por consciencializar as pessoas do quão doloroso,e cheio de momentos que não sabemos.
Um abraçinho para a família, principalmente para as TRÊS

Querida Soraia e João. Ler a vossa história foi recordar a minha. Vocês são enormes e lindos. A Benedita vai estar para sempre a olhar para vocês com um orgulho enorme, porque ela partiu mas o amor ficou.
Gosto muito de vocês.

Queridos pais,
Ainda no processo da vossa dor, venho deixar-vos um abraço enorme. Venho mostrar o meu respeito por terem partilhado a vossa vida e para aquietarem tantos outros corações. A existência da Benedita teve um propósito, tem sempre. Espero que ela vos esteja a ver e a guiar de um lugar bem melhor que este e que um dia se possam encontrar.
Um beijinho no coração ❤️

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