Decido escrever a minha história com algum medo, mas com coragem. Existem vários tipos de perda, a que não controlamos e aquela em que temos a difícil tarefa de decidir. Desta última pouco se fala, pois é tão susceptível de julgamentos. Mas acreditem, o maior julgamento é aquele que fazemos a nós próprias. Mas tem de ser falado, e acima de tudo tem de ser compreendido.
A minha história é composta por um aborto espontâneo, o nascimento do meu bebé arco-íris, e mais recentemente uma interrupção médica da gravidez.
Em finais de 2018, pela primeira vez, um teste positivo de gravidez! Um bebé planeado e muito desejado. Por motivos profissionais tinha de avisar logo no trabalho pelo que pensei: “se os meus colegas iriam saber da minha gravidez, claro que também vou contar à minha família!”. Longe de saber que algo poderia correr mal, o que poderia correr mal? nada! bem, não foi bem assim. Fui uma em quatro. Às seis semanas de gestação comecei com hemorragias, uma ida às urgências em que pude ouvir (pela última vez) o bater do coração do meu filho, mas que nada se podia fazer além de ir para casa em repouso. Mais dois dias com hemorragias até que fui com o meu Obstetra e em que já não havia nada… Um vazio. Foi um choque muito grande. Por ingenuidade, ignorância, e até por tabu da sociedade a questão do aborto espontâneo não é/era uma coisa que se falasse abertamente, até que depois do que me aconteceu comecei a ouvir de pessoas próximas “a mim também já me aconteceu”, “acontece muitas vezes”. Mas diz-se baixinho, porque lá está, não são assuntos para se estar a falar. Tantas de nós sofremos em silêncio, que não conseguimos homenagear e falar sobre um ser que tanto amamos mas que só conheceu o bater do nosso coração.
Consegui engravidar alguns meses depois e 2019 foi um ano mágico, o ano do nascimento do meu bebé lindo, do meu Henrique, que me enche de orgulho de ser Mãe. Tive uma gravidez calma, sem mal-estar, com muita confiança mas com receio, claro. Mas infelizmente certas palavras que ouvimos marcam-nos, e nunca me vou esquecer de no meio de tanta felicidade pelo meu bebé arco-íris alguém me dizer: “vê lá se agora tens cuidado!”…
Entramos aqui num caminho que é tão difícil de lidar, se por um lado precisamos de falar sobre o vazio que sentimos quando perdemos um filho repentinamente, até que ponto não é falado para nos protegermos a nós próprias? O caminho só nós próprias o podemos fazer, o luto é nosso e do companheiro, mas a solidão torna-o numa luta que no meio de tanta dor pode tornar-se difícil de ultrapassar. Mas ultrapassamos.
Assim, depois do meu bebé arco-íris existe outra história nesta minha história que por ser tão recente ainda me dói, e que sei que me vai acompanhar por toda a minha vida. Um poder que nunca quis ter nem pensei em ter, que é o poder da decisão. A vida é feita de decisões, isso todas sabemos, mas a decisão que é feita para a Vida, ou não, é algo que é tão intenso quando destruidor. Mas não podemos deixar que nos destrua, porque sabemos que foi uma decisão de Amor.
Neste ano de 2021, em junho, teste positivo de gravidez! Bebé pensado mas não propriamente planeado, mas que no meio do receio o amor e entusiasmo ia crescendo a cada dia que passava. Na ecografia do primeiro trimestre o Obstetra revelou algo que não contávamos, um valor que não estava em conformidade, que ultrapassava ligeiramente o valor expectável. A amniocentese tinha de ser realizada. O tempo de espera até poder ser realizada a amniocentese e o tempo que leva a saber resultados cria um turbilhão de sentimentos tão ambíguos quanto contraditórios: é a esperança versus o desespero, a certeza de que está tudo bem mas… e se? e se? não pode ser! A ansiedade cresce de uma forma que esgota, cansa, desgasta. Quer seja uma semana, quer seja um mês, nada nos prepara para quando ouvimos “não temos boas notícias”. Alteração do cariótipo, Trissomia. Por termos esperado algum tempo pelos resultados já tínhamos uma decisão, mas que não deixa de ser a decisão mais difícil da nossa vida. Decidimos a interrupção médica da gravidez. Não interrupção voluntária, médica. Apesar das alterações cromossómicas serem compatíveis com a vida, existirá qualidade de vida? Todos queremos qualidade de vida para os nossos filhos, queremos felicidade, autonomia para quando não existirmos no mundo, e saúde acima de tudo, mas… e quando isso não é possível? somos egoístas por não arcarmos com as consequências de dar continuidade à vida ou hipócritas por acharmos que poupamos a uma vida de sofrimento? Ou seremos altruístas por decidirmos sermos nós a sofrer sem um filho para ele não sofrer?
Às 21 semanas e 4 dias conheci e despedi-me do meu filho, tive um parto em que só ouvi o meu choro e um vazio tão grande. Tive o meu bebé nos meus braços, toquei na sua linda cara e mãos perfeitas e pedi-lhe desculpa… desculpa-nos João Eduardo, perdoa-me meu filho…
Este meu testemunho está cheio de reflexões, de dor e dúvidas mas que sei que vou superar. Desengane-se quem desvaloriza o poder de uma decisão, desengane-se quem acha que é de ânimo leve. A perda gestacional também pode ser feita através de uma decisão, também é válida e traz muita dor. A mim dá-me alento a seguinte frase: “Amar um filho é querer o melhor para ele, mesmo que o melhor seja não o ter”. Que ajude a apaziguar alguém, e que ajude na compreensão do que é incompreensível para muitos.
2 comentários a “Vanessa”
Um abraço bem apertadinho.
Sei bem o que é esse poder de decisão..
Sim vai nos acompanhar pro resto da vida.. mas Coragem Fé e Deus no comando.
Um beijinho muito grande e muita força, também eu sei o que são essas dores, abortos e 1 interrupção pela mesma causa, sem dúvida tomamos a mesma decisão pois achamos que era o melhor para a nossa bebé, não falamos sobre isso pelo mesmo motivo, o julgamento das pessoas que nada sabem.