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O meu nome é Rafaela.

Partilho hoje a minha história, porque foi exatamente há um ano que ouvi e vi o Afonso pela primeira vez.

No dia 27 de novembro de 2023, fiz uma primeira ecografia, após um teste positivo, confirmando a gravidez com 6 semanas de gestação.

Foi um momento mágico. Foi o momento mais feliz da minha vida até hoje. Tenho um pequeno vídeo dessa ecografia e do coraçãozinho dele a bater, praticamente inaudível, mas que encosto ao meu ouvido para de alguma forma me transportar para aquele momento. E como
eu gostaria de voltar! De saber que estava tudo bem, que o meu bebé ainda estava comigo… Até dia 09 de janeiro de 2024, senti-me a mulher mais feliz do mundo, nunca senti tanto amor, nunca senti que tudo fazia tanto sentido!

Contudo, no dia 09 de janeiro de 2024, na ecografia do 1º trimestre, alguns marcadores apontaram para a existência de algum tipo de anomalia/trissomia. Foi um momento aterrador. Ainda há pouco o tinha visto pela segunda vez, em dezembro, com 9 semanas, e estava
tudo bem. Como é que agora me dizem que o meu bebé pode não estar bem?! Que devo fazer um exame para confirmar? Que existe o risco de o perder?!

A partir desse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Tudo aconteceu muito rápido a seguir… A probabilidade de trissomia 21 era de 1 em 4, o que era bastante elevado. Eu tinha 29 anos e o pai, 28, e não, não tínhamos nenhum grau de parentesco (esta foi uma pergunta que na altura nos foi feita). O risco de trissomia 13 era também relativamente elevado, de 1 em 28.

Para confirmar o diagnóstico, como o meu bebé tinha apenas 12 semanas, não podia fazer uma amniocentese. Então, no dia 16 de janeiro, fizemos uma biópsia das vilosidades coriónicas. A biópsia das vilosidades coriónicas é, como a amniocentese, um procedimento
invasivo e consiste na colheita de fragmentos da placenta (onde se situam as vilosidades coriónicas) que contêm material genético idêntico ao do bebé. Estava muito nervosa.

Apesar de ser bastante reduzido, existia sempre risco de abortamento e estava com muito medo de o perder ali. Perante as circunstâncias, correu muito bem e, após realizaram o procedimento, a médica verificou os batimentos do bebé. Eu não sabia nesse dia, mas foi nessa data a última vez que ouvi o seu coração bater…

No dia 18 de janeiro, soubemos o resultado deste exame, confirmando-se a trissomia 21. Olhando para trás, foram poucos dias entre dia 09 e dia 18, mas confesso que me pareceu uma eternidade, em que, a cada dia, eu morria um bocadinho… Não sabia se havia de ter esperança, porque a probabilidade até estava a nosso favor (3 em 4) ou se havia de me mentalizar que não estava tudo bem (1 em 4). E, de repente, a confirmação de que realmente não estava tudo bem… Foi nesse momento que o meu mundo desabou.

Eu e o pai do meu bebé tínhamos conversado sobre esta possibilidade e, para nós, não fazia sentido trazer ao mundo uma criança com esta condição. Em primeiro lugar, porque o mundo não está preparado para aceitar a diferença. Em segundo, porque não sabíamos exatamente
que problemas de saúde estariam associados e ainda qual o grau de trissomia. Em terceiro, porque, a nosso ver, não teríamos condições para poder prestar o tipo de cuidados que uma criança com necessidades especiais merece e precisa. A interrupção médica da gravidez (IMG) era uma possibilidade e foi a nossa escolha. Na altura, foi muito difícil, mas foi a minha/nossa decisão…

Olhando para trás, novamente, foi tudo muito rápido mesmo e, independentemente de outras questões, agradeço ao hospital por isso. Isto, porque, a cada semana, o bebé evolui rapidamente e pensei que, quanto mais adiasse, maior seria a dor, se é que a dor de perder um filho se pode medir… Enfim, às vezes (ou muitas vezes), questiono-me sobre esta decisão, sinto culpa, penso que escolhi matar o meu filho… Tento lembrar-me que foi uma escolha por amor.

Foi uma escolha num contexto que não escolhi. Foi uma escolha
condicionada e nenhuma mãe/pai deveria ser confrontada com a decisão da vida ou da morte do seu próprio filho.

Mas assim foi… No dia 24 de janeiro de 2024, o Afonso nasceu e partiu. Com ele partiu também a pessoa que eu era até então. Não consigo deixar de sentir dor quando penso nesse dia e, ao mesmo tempo, um amor imensurável.

Na altura não fui capaz de expressar a vontade que tinha de pegar no Afonso. Essa opção também não me foi apresentada… E o momento em si roubou de mim todas as capacidades que me restavam para o pedir. A culpa também aparece por isso. Gostava tanto de ter pegado nele e não fui capaz de o verbalizar.

Não me despedi do Afonso como queria e gostava que me tivessem dado essa opção. Por mais pequenino que fosse, com 14 semanas e 2 dias, o meu colo era seu e não lho dei. Às vezes, revivo esse dia, imagino-o no meu colo… E fico mais em paz.

Só recentemente percebi que, por mais doloroso que tenha sido esse dia, escolheria sempre vivê-lo a nunca ter tido o Afonso. Foi curta a sua existência, demasiado curta, mas escolheria sempre tê-lo, apesar de saber o final da sua história…

Ainda estou a aprender a dar um novo significado à perda do Afonso. Estou a aprender quem sou eu agora e para onde vou. Penso que a dor nunca vai desaparecer, mas sinto que, aos poucos, vai doendo cada vez menos. A dor dá lugar ao amor. Um amor sem limites.

Um amor incondicional. E penso que foi mesmo isso que o Afonso me veio ensinar. O verdadeiro significado de amor. Tenho aprendido muito sobre isso e sobre tanto… Sobre mim, sobre as pessoas, sobre o luto, sobre a dor… Sobre apreciar a natureza, reparar nas flores, ver borboletas brancas vezes sem conta, ouvir os pássaros. Sobre apreciar a vida e a sorte que tenho pela minha própria existência. Sobre apreciar cada momento e celebrar pequenas vitórias. Agradeço ao Afonso por isto e por tanto…

A nossa história começou ainda antes do teste de gravidez positivo do dia 9 de novembro de 2023. Começou nos meus sonhos em ser mãe, em construir uma família…

Hoje, sou a mãe do Afonso e ele será sempre o meu primeiro filho. E sempre que dizem o nome dele, sempre que falam sobre ele, o meu coração fica quentinho e sinto-me feliz. Deixo aqui também um apelo a isso – digam o nome dos nossos filhos, por favor.

Eles existiram, mesmo que não os tenham visto, nós vimo-los e/ou sentimo-los… Eles existiram… E nosso amor por eles nunca deixará de existir!

Partilho esta história também, porque me lembro de, naqueles dias de janeiro, procurar outras histórias que me dessem algum “conforto”, para não sentir que estava sozinha nesta dor… E encontrei um testemunho no site do “Amor para além da lua” sobre IMG e trissomia 21. Li e reli vezes sem conta esse testemunho. Ainda o leio, às vezes, para sentir que não estou sozinha, para ter algum “colo” e sentir mais paz na minha escolha.

Lembro-me também de procurar histórias de mães que ficaram sozinhas, sem companheiro, depois da perda. E queria dizer que esta é uma dessas histórias. Duas semanas após a IMG, o pai do Afonso decidiu abandonar-me e deixou-me sozinha na nossa casa… Conto isto apenas para que, se alguém como eu procurar uma dessas histórias, essa pessoa saber que não está sozinha. Sim, isto acontece, é um pesadelo a dobrar, mas acontece. É viver o luto de um filho e, ao mesmo tempo, o luto de um relacionamento.

Nem sempre lidamos com a dor da melhor forma e os momentos mais dolorosos e desafiantes da nossa vida vêm exatamente mostrar-nos quem está verdadeiramente do nosso lado, quem verdadeiramente nos ama… E eu não fiquei sozinha, ainda que, muitas vezes, não me sentisse suficientemente compreendida, tive familiares e amigos que me deram (e dão) a mão. E serei eternamente grata por isso.

Neste caminho, também encontrei conforto e acolhimento em grupos de apoio à perda gestacional/neonatal e ainda na minha psicóloga,
a quem estou igualmente grata…

E, acima de tudo, estou muito grata por poder ter vivido a breve vida do Afonso que viverá para sempre em mim. É um amor sem fim.