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Ana Rita V.

Existe um tempo e uma forma para contar cada história. E eu sinto que chegou a altura de contar a minha. Mas vou começar pelo fim. Um fim que é um início.

O meu filho Rodrigo nasceu a 17 de janeiro deste ano. Saudável. Perfeito. A berrar a plenos pulmões mal o obstetra o ergueu sobre o pano verde que ocultava o cenário de uma cesariana mais do que programada. Quando o levaram para fora do alcance da minha vista e o conforto de algum par de mãos lhe calou o choro, eu sabia que ele continuava algures naquela sala, por isso pedi-lhe alto: “Chora filho! Chora para a tua mãe ouvir!”. Mas que tipo de mãe quer ouvir um filho chorar? É simples. Uma mãe que já deu à luz antes mas nunca chegou a ouvir o choro do seu bebé. O choro. Esse sopro divino que anuncia o milagre da vida.

Em março de 2022 descobri que estava grávida pela primeira vez. E foi uma gravidez perfeita. Logo eu, que nunca pintei a maternidade de cor de rosa e estive sempre consciente sobre todos os desafios que nas diversas fases da gestação poderiam surgir. Sem enjoos, noites mal dormidas ou desconfortos maiores, eu agradecia diariamente aos céus pela plenitude física com que tinha sido brindada. Semana após semana, senti-me cada vez mais confiante sobre aquela vida que eu guardava no meu ventre e que cada ecografia confirmava: Era uma bebé saudável.

E às 40 semanas a Laura decidiu nascer. Observada pelo médico, constatou-se o que eu já calculava: ia demorar. Assim, fui instalada numa pequena ala com outras mulheres e respectivos companheiros. Deitada, sempre com o meu marido ao lado, de tão tranquila e confortável chegava a dormitar, mas depressa era acordada pelos gemidos de dor daquelas mulheres que embora eu não visse através das cortinas, ouvia muito atentamente, indagando-me quando seria eu. Nunca fui. A determinada altura uma enfermeira perguntou-me se precisava tomar algo para as dores. Estranhei a pergunta. Respondi-lhe que não tinha qualquer dor e ela estranhou a resposta. “Mas já tem contrações fortes mamã”, respondeu-me. Nesse momento senti de imediato que algo estava errado.

A enfermeira regressou à sala de monitorização e confirmou o registo das contrações que eu nunca senti. Voltou com uma médica e no momento em que eu me posicionava para ser examinada detectamos uma grave hemorragia. Silenciosa. Indolor. Vieram mais médicos e a minha calma escalou a pânico. Em menos de 10 minutos estava no bloco operatório para uma cesariana de emergência com anestesia geral. Contei pelo menos 8 pessoas a manobrar todo o meu corpo em simultâneo, a uma velocidade tão rápida que o meu raciocínio já não acompanhava. Perguntaram-me o meu peso. Só pela terceira vez fui capaz de responder. De seguida, disseram-me que ia adormecer. E a última coisa que eu pensei foi que já não acordava. Mas que pelo menos a minha filha pudesse viver.

Quando abri os olhos, ainda muito entorpecida pela anestesia, procurei-a ao meu lado. Não havia nenhum bebé. Era óbvio que as coisas não tinham corrido bem e provavelmente ela estaria em neonatologia – foi a minha conclusão de segundos. Identifiquei a imagem do meu marido e de 4 profissionais de saúde, entre eles a médica que me acompanhou até ao bloco cirúrgico. À medida que os seus rostos ficavam nítidos eu notava um semblante cada vez mais pesado. Perguntei pela minha bebé e vi o rosto da médica fechar-se ainda mais. Não tive resposta. O relógio de parede ao fundo marcava 12:20h. Perguntei novamente. E ela começou por dizer, a custo, que as coisas não tinham corrido bem.

Ainda hoje não me recordo do resto dessa conversa. A psicologia explica que devido ao choque da notícia o meu cérebro simplesmente apagou esse momento. Então foi durante os dias seguintes que passei internada na maternidade, entre transfusões de sangue, desmaios e novas conversas sobre o efeito de cada vez menos medicação, que fui tomando consciência clara e efetiva da minha dura realidade. A minha Laura, a minha bebé perfeita que crescia saudável no meu ventre, partiu momentos após nascer. E eu não tive sequer tempo de vê-la com vida, ouvir-lhe o choro, sentir-lhe o calor.

Perdi-a. E quando soube que a perdi, para além do tanto que morreu em mim, nasceu também um imenso grito de dor que eu não gritei. E durante semanas chorei sufocada por essa dor que me consumia, até que um dia os olhos doíam tanto que as lágrimas caiam e eu já não sentia. Hoje a dor ainda é dor, mas também é amor e inevitavelmente saudade. Saudade do que vivemos juntas enquanto o meu corpo lhe foi casa. Mas também saudade do que não vivemos e tantas vezes eu imaginei.

Largos meses depois tivemos as respostas médicas que necessitávamos. Há quem diga que quando nasce uma mãe nasce uma culpa. Mas quando nos morre um filho somos nós que perseguimos incessantemente A CULPA. Mesmo que os papéis digam que não tivemos culpa alguma, que ninguém teve culpa na verdade. Eu persegui A CULPA. Na falta de culpados com nome próprio, confesso que muitas vezes culpei em silêncio o meu corpo.

Precisamente um ano depois do nascimento da Laura, a 2 de novembro de 2023, eu estava na maternidade a fazer a primeira ecografia do meu segundo filho. Um verdadeiro presente dos céus. Tal como na primeira gravidez, descobri muito precocemente graças aos sinais que o meu corpo me dava, mas desta vez, curiosamente, preferia não ter sabido tão cedo. Embora feliz, preferia que o meu corpo fosse casa para este bebé, sem que a minha mente, sabendo disso, ficasse tolhida de medo e ansiedade. E foi precisamente assim que aconteceu.

Vivi os dias seguintes num estado de alerta permanente como quem, depois de experimentar a tragédia, espera uma nova a qualquer momento. Por isso, no decorrer da segunda ecografia, sem que o obstetra tivesse tempo de expressar uma única palavra, rapidamente captei a sua expressão desolada. Perguntei se estava tudo bem, com o tom de quem tem a certeza que não, mas quer desesperadamente estar enganada. Não estava enganada. Não havia batimentos. Desde as 8 semanas e 5 dias.

Depois do choque emocional, e da incredulidade de quem começava a erguer-se do chão e para lá foi novamente atirada com toda a força, o processo de abortamento provocado foi a coisa mais fisicamente devastadora que vivi em toda a minha vida. Depois de aguardar vários dias com este bebé sem vida no meu ventre, graças a um fim de semana prolongado de Dezembro em que a “Unidade de 1°Trimestre” não laborava, voltei à maternidade. Lembro-me da obstetra me perguntar se tinha percebido os procedimentos que me foram explicados, uma vez que parecia “tão perdida”. Perdida era a palavra certa. Completamente desconectada do tempo e do espaço porque efetivamente eu não estava ali. A única pergunta que fiz – “Vou sentir muita dor?”. “Qualquer aborto provoca dor” – foi a resposta. Iniciei a medicação abortiva e mandaram-me para casa.

Dor é uma crise renal ou uma cárie dentária. Dor é partir um braço ou torcer um pé. Aquilo que eu senti está para além do limiar da dor. Eu senti cada contração. Berrei. Contorci-me. Recolhi o feto para um frasco conforme me foi pedido. E senti mais contrações. E mais dor. Por muito pouco não perdi os sentidos enquanto deambulava pelo corredor de casa.
Aquilo que vivi nesse fim de dia e pela madrugada fora, e também nos dias seguintes, causou em mim uma tremenda revolta. Num misto de confusão e fragilidade culpei mais uma vez o meu corpo por falhar novamente na sua tarefa de gerar vida, mas sobretudo senti que tinha sido punida por essa falha com um castigo da idade média.

Semanas depois, a análise do feto permitiu-nos saber que não existia qualquer relação médica entre as duas perdas. E que era uma menina. Mais uma menina. Mais um sonho cor de rosa que não me deixaram pintar.

Durante meses ponderei se teria capacidade emocional de avançar para uma nova gravidez. Os relatórios médicos davam-nos algumas respostas mas nenhuma garantia. E em todas as consultas ouvíamos o mesmo: Qualquer gravidez implica risco e/ou possibilidade de perda. Mas quando já perdemos tanto, a possibilidade de perder de novo torna-se avassaladora. E quando já estava mais perto de desistir do que de tentar novamente, dei por mim a imaginar como seria a minha vida tendo desistido. E conclui que nada, mas absolutamente nada que pudesse fazer com a minha vida iria minimizar o vazio enorme que eu sentia. E aí entendi, que desistir não era opção.

E assim chegou o Rodrigo. Saudável. Perfeito. A berrar a plenos pulmões. Observo-o enquanto dorme e parece que ainda não acredito que está aqui.

Quando perdi a Laura, apanhada nesse duro golpe para o qual absolutamente nada nos prepara, eu percebi que não tinha outra alternativa senão sobreviver. Principalmente quando tomei consciência do sério risco que a minha própria vida correu na sequência das complicações decorrentes do parto. Eu ainda estava aqui. Embora me sentisse uma espécie de resto de qualquer coisa, em que a parte principal faltava, a verdade é que eu ainda estava aqui. E lembro-me de me focar nesse facto tão simples e ao mesmo tempo tão significativo: “Se eu ainda estou aqui, haverá uma razão. E se eu demorar muito tempo a descobrir qual é, talvez seja esse o segredo para me manter viva.” Hoje o meu segredo tem nome. Chama-se Rodrigo.

Existe um tempo e uma forma para contar cada história. Esta é a minha história. E tem um final feliz.

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